O sol estava brilhando. Envolvia meu corpo e minha mente. Sentia que o dia começava lindo… quente e sereno. Ouvia o barulho das ondas se quebrarem ao fundo e o som do vento balançando os coqueirais. Uma preguiça gostosa tomava conta de mim.
Aos poucos, fui abrindo os olhos e, lentamente, despertando de uma noite de descanso.
A primeira coisa que vi foi o mar. Azul e infinito! Troquei alguns minutos de contemplação por uma paz interior muito profunda. Queria que o tempo parasse naquele momento.
“Isso é tudo que sonhei um dia”, pensei. “Ter o mar dentro do meu quarto!”.
Enquanto meus pensamentos divagavam sobre o céu, a terra, a água e o ar, meu estado de encantamento foi, gradativamente, sendo substituído pela dura realidade.
“Peraí!!!”, pensei subitamente. “Esse não é o meu quarto… e muito menos o mar está dentro dele!!!”
Sentei-me rapidamente e olhei a minha volta. Vi que havia dormindo sobre a grama, no quintal de um flat que ficava de frente pra praia, no Jardim dos Namorados. Fazíamos isso pelo menos uma vez na semana.
“Semana!? Que horas são!!? Meu Deus, hoje é quinta-feira e, se não corrermos muito, nós vamos chegar atrasados para a primeira aula na faculdade!!”
“Nós!!?” Lentamente fui virando o rosto para o lado e vi minha amiga Juliane dormindo.
Só pra vocês entenderem, vou precisar voltar um pouco mais no tempo.
Juliane é uma estudante de psicologia que conheci numa das festas realizadas na faculdade. Ela era amiga, de uma amiga, de um amigo meu. Fomos apresentados e logo ela me chamou a atenção pela forma apaixonada com que defendia as suas ideias. Baiana, descendente de pais americanos, tinha cultura para falar de praticamente qualquer coisa, desde os assuntos mais simples, até os mais elaborados. Nessa noite, enquanto conversávamos, discordamos de quase tudo. Ficou claro, para mim, que não tínhamos, absolutamente, nada em comum. Mas, mantivemos um diálogo cordial e interessante até o final. Despedimo-nos sem trocar telefones ou contatos. Confesso até que, dois dias depois, não conseguia mais lembrar qual era o seu nome.
Uma semana depois, em outra festa – estamos na Bahia, né galera!? -, voltamos a nos encontrar. Inexplicavelmente, havíamos mudado. Desta vez, estávamos mais receptivos, um ao outro. Começamos a nos entender. Depois de algumas horas de conversas, já bastante íntimos, decidimos nos afastar da multidão e do barulho. Fomos procurar um lugar mais tranquilo e reservado para… isso mesmo que vocês estão pensando: discutir sobre a Hipótese de Gödel e suas consequências epistemológicas para o mundo. Também, o que vocês esperavam de dois nerds, que a gente fosse ficar!?
No final, ao nos despedirmos, descobrimos que erámos quase vizinhos. Morávamos no mesmo conjunto, e apenas um prédio separava o meu do dela! A partir desse dia, nos tornamos grandes amigos.
Como estava dizendo antes, pelo menos em um dia da semana, cultivávamos o hábito de passar horas deitados sobre a grama, olhando para o céu e conversando sobre quase todos os assuntos que existem no Universo, e eu não estou exagerando! Cansados, sempre adormecíamos ali mesmo.
Eu sempre acordava primeiro. Tínhamos todo um ritual de organização para sairmos. Entretanto, naquele dia, precisávamos acelerar as coisas.
Acordar a Juliane era uma tarefa muito simples. Bastava se aproximar do seu ouvido e falar, delicadamente, algumas palavras:
“July”, pausa curta, “July… precisamos ir!!!”
Ela despertou e começou a se espreguiçar!
July se espreguiçava de uma forma muito engraçada! Ela esticava um dos braços, a perna oposta a este braço, se entortava toda, abria apenas um dos olhos e urrava como um urso bebê. Apesar de engraçado, eu ficava sério. A última vez que dei risada disso, ela se virou e perguntou com a cara fechada e as duas mãos na cintura:
“Tá rindo do quê?”
“Do seu jeito de se esprig… AAAiii!”
Antes mesmo que eu terminasse a frase, ela tinha me dado um tapa no ombro, tão forte, que ficou doído por uns dois dias!! A mensagem estava dada! Pra um bom entendedor, um tapa no ombro basta! A partir daquele dia, eu aprendi a morrer de rir, mas só por dentro!
“Temos que correr, senão vamos nos atrasar para a primeira aula na faculdade!”, disse calmamente e, antes que ela perguntasse, me adiantei:
“Ah… e o mar não está dentro do seu quarto!!”
“Como não Celo!?”, disse com uma voz sonolenta, “Eu estou vendo ele ali mesmo, na minha frente!!”. Nessa hora, ela arregalou os dois olhos com um ar de espanto. Acho que, assim como eu, a ‘ficha’ acabara de cair!!
Entramos correndo no apartamento. Juliane era uma pessoinha muito frágil. Tentava conduzi-la pelas mãos para que, na correria, ela não se machucasse. Íamos correndo e, no meio do caminho, pegando tudo que achávamos que seria útil. Escovamos os dentes, lavamos os rostos e, praticamente, pulamos do apartamento dos tios dela para dentro do nosso carro.
No início, nós íamos a todos os lugares a pé ou de ônibus. Mas, à medida que fomos avançando nos nossos cursos, a quantidade de compromissos aumentou na mesma proporção. Já não tínhamos tanto tempo disponível assim. Resolvemos, então, montar uma sociedade. Juntamos R$ 2.000,00 (R$ 1.000,00 meus e R$ 1.000,00 dela) e compramos nosso primeiro carro: um fusca! Ele não estava em bom estado, mas era o que dava pra comprar com o nosso dinheiro.
Tínhamos um amigo em comum, o Henrique. Ele era estudante de engenharia mecânica. Uma pessoa inteligentíssima que construía os próprios carros que dirigia.
Henrique se ofereceu para restaurar o nosso carro e só nos cobrou o material. Nosso fusquinha ficou lindo… todo branquinho, parecia um bebê!!! No banco de trás, Henrique fez uma pequena estante sobre o acento. Mais uma de suas ideias geniais. Quando dávamos carona, era só recolher a estante para dentro do bagageiro, e assim conseguíamos liberar o assento para as pessoas sentarem.
Na ida, ela dirigia. Na volta, eu dirigia. Esse era o nosso acordo. Eu tinha toda a agenda dela na minha cabeça, e ela, tinha toda a minha agenda na cabeça dela. Enquanto não chegávamos no campus, eu abria a estante e começava a separar o material dela e o meu também. Lembrava para ela todas as provas que teria naquele dia, quais os trabalhos que teria que entregar, e quais eram as disciplinas do dia e seus locais. Ela fazia o mesmo comigo.
Chegamos no Instituto de Matemática e, quase sem esperar o carro parar, me joguei pra fora dele e comecei a correr, querendo chegar antes do professor. Até hoje, acho uma falta de respeito tremenda, e muito deselegante, chegar atrasado na sala de aula sem uma justificativa verdadeira.
Mal dei algumas passadas e ouvi um grito:
“EEEEEiiii, você está esquecendo meus beijooooos!”
Conhecia Juliane como a palma da minha mão! Se eu não voltasse e desse esses dois beijinhos no rosto, de bom dia, ela fechava a cara por uma semana! Sem contar que ela acreditava, e acreditava mesmo, que sem dois beijinhos de bom dia, alguma coisa de muito ruim ia acontecer. Voltei para o carro e, para não correr o risco de ouvir “esse não valeu, foi muito rápido”, enchi-me de paciência e, vagarosamente dei seus dois beijinhos e, agora, um abraço (sempre aparece mais coisas quando estamos atrasados, não é mesmo!?).
Despedi-me dela e danei a correr. Passei ‘voando’ pelos professores, cumprimentando-os rapidamente. Entrei na sala de aula e, sem muito alarde, sentei na cadeira de sempre. “Ufa! Missão cumprida”, pensei! De repente, senti pequenas cutucadas no meu ombro esquerdo. Era o Carlos, Carlos Magnum.
“Reston! Aconteceu alguma coisa!? Meu rei, você tem grama até dentro da sua orelha!!!”, disse ele com um tom de surpresa.
“É que eu escorreguei e sai rolando no morro que fica em frente ao meu prédio!”, respondi prontamente!
“De novo!! É a segunda vez essa semana!! Olhe, tome mais cuidado!! Senão você vai acabar se machucando!”, respondeu ele.
“Como assim ‘de novo’!!?”, pensei, “Eu já inventei essa desculpa essa semana!!? Quando!? Tenho que fazer uma lista com as desculpas que preciso dar sobre esse assunto!”
Marcelle, outra grande amiga que fazia Matemática comigo, sentou-se do meu lado e me ajudou a catar a grama, dos locais que eu não conseguia alcançava, e a colocá-la dentro de um copo de plástico. Assim, assistimos os dois tempos daquela disciplina.
Quando a primeira aula terminou, corri para o vestiário e tomei um banho. Juliane fazia a mesma coisa na faculdade dela. Tínhamos que aproveitar todo o tempo disponível, sem desperdiçar nem um minuto!
Nas universidades baianas, assim como em muitas universidades federais do país, quando acaba uma aula, é o aluno que sai e se encaminha para a próxima sala. Isso é fruto do período da ditadura no país. Os militares queriam desestimular os laços de amizade entre os alunos para evitar que movimentos de liberdade e anarquistas ficassem fortes devido a esses laços de amizade.
Entretanto, na Bahia, o tiro saiu pela culatra. Baianos, por definição, fazem novos amigos como tomam água! Cada disciplina que fazíamos era em uma sala diferente, em um lugar diferente e com uma turma diferente. Resultado, terminávamos o semestre letivo com uns 100 novos amigos! Tínhamos, praticamente, um evento social por dia (durante toda a semana). Eram aniversários, casamentos, batizados, festas, grupos de estudos, formaturas, luaus, etc.
Passei o dia de um lado para o outro. Era o dia da semana em que as salas ficavam mais distantes umas das outras. Às 17h00, em ponto, já estava esperando Juliane passar, na frente da biblioteca, pra me pegar. Agora, era a minha vez de dirigir.
O final da tarde, para nós, era sagrado. Nunca marcávamos compromisso nenhum das 17h30 às 18h30. Porque nesse período, íamos até o Farol da Barra, sentávamos no muro da praia e ficávamos admirando o pôr-do-sol, sem trocar uma palavra sequer. Às vezes fechávamos os olhos e, simplesmente, sentíamos aqueles momentos. A sensação do sol quente no rosto, misturado com o vento que soprava do mar e o silêncio sereno do final da tarde, era o mais próximo do paraíso que podíamos chegar! Isso sem falar no visual!
Quando o sol foi embora, fomos até o Rio Vermelho pra comer alguma coisa. Era o nosso almoço-jantar! Adorávamos comer acarajé na barraca da Sidinha.
“Posso ver o cardápio!?”, sempre pedia Juliane.
Apesar de não ter tanta variação assim, de comidas e bebidas, ela sempre cumpria o ritual. E sempre pedíamos a mesma coisa! Eu nunca conheci uma pessoa tão apaixonada, por suco de umbu, quanto ela. Sempre ensaiava pedir informações sobre um novo suco, mas, no final, ela sempre pedia… suco de umbu! Quer apostar!?
“Isso parece muito bom, mas vou querer um acarajé com suco de umbu!”, disse ela.
“Eu não falei!?”
“Sidinha, também vou querer a mesma coisa… pra te acompanhar Juliane”, complementei.
Sida sempre achava isso tudo muito engraçado. Sempre muito sorridente, educada e simpática, ela preparava carinhosamente nosso pedido. E sempre ganhávamos um quadradinho de doce de leite. Huuum, que delícia!
Pegamos o nosso pedido e sentamos, novamente, no muro da praia. Naquela hora da noite, a fome era tanta, que ficávamos alguns minutos sem falar uma palavra. Até que…
“Fala”, repentinamente ela cortava o silêncio.
“Falar o quê July!?”, retruquei calmamente, me fazendo de desentendido.
“Eu conheço essa sua cara. Você tá querendo me dizer alguma coisa. Fala, fala, fala. Onde foi que eu me sujei dessa vez!? Na bochecha!?”, falou toda agitada!
Simplesmente apontei discretamente para a sua sobrancelha esquerda.
Ela arregalou os olhos, virou o rosto para frente e, discretamente, começou a passar o guardanapo na sobrancelha. Incrédula!
Se bem conheço Juliane, nesse exato momento, ela deve estar pensando:
“Como é que eu consegui sujar a minha sobrancelha com o vatapá do acarajé!?”
Aprendi a rir por dentro disso também!!
“Dou meu reino pelos seus pensamentos, July!!”, sempre a provocava.
Hoje é quinta-feira. Tínhamos marcado de estudar na casa do Juninho com a galera. Passamos no supermercado e compramos os refrigerantes.
Normalmente, nossas provas na faculdade eram na sexta-feira. Sempre aproveitávamos a quinta para repassar a matéria em grupo. A casa do Juninho era o nosso quartel general! Um lugar onde os debates e as trocas culturais eram incentivados ao extremo. As três primeiras horas eram reservadas para os grupos que pertenciam à mesma sala. Eles repassavam toda a matéria sem interferir nos outros grupos.
As duas horas seguintes eram interdisciplinares. Todos participavam e tentavam entender pontos de vistas, muitas vezes, conflitantes entre as faculdades. Nessa hora, trocávamos experiências e conhecimentos não só acadêmicos, mas de vida.
As três últimas horas eram dedicadas ao nosso luau e, por fim, o grande desafio da noite: homens contras as mulheres no jogo de mímica. Não lembro de um só ter chegado ao fim. Sempre os dois lados roubavam e o jogo era suspenso. Acabava em engraçadas discussões.
Nesse dia. lembro-me que, em uma das rodadas, a palavra-chave era ‘pé’. As meninas seriam mais rápidas que nós, na certa. Então, pisei, por baixo da mesa, várias vezes no pé de um colega até me certificar que ele tinha entendido o que era.
Quando o relógio começou a marcar o tempo, mal consegui desenhar meio risco no papel, e ele pulou gritando:
“Pé! Pé! Péééééééééé!!!”
As meninas se entreolharam, e uma delas disse:
“Como foi que você associou esse risco anão a um pé!? Meninas eles estão roubandooo!!!!”
E novamente começava a engraçada discussão entre os meninos e as meninas.
Nessa hora, levantei meus olhos e vi você! Em uma dessas coisas que não consigo explicar, comecei a ouvir as vozes e o barulho cada vez mais baixos. E, como num filme, uma luz começou a ser refletida sobre você. As pessoas, em volta, foram gradativamente desaparecendo na escuridão que se formava ao seu redor. Você me olhou e sorriu, nossos olhares se cruzaram. Eu retribui sorrindo de volta.
Engraçado, mas desse momento em diante, não consigo me lembrar do que aconteceu depois. Deve ter sido uma dessas experiências que ficam guardadas entre duas pessoas, em algum lugar da mente… e do coração.
Sabe de uma coisa… desse dia em diante, nunca mais te vi com os mesmos olhos!
Written by Marcelo Reston